Carta a um filho (para memória futura)
Meu querido,
Já levas quase dois anos de vida e neste quase entra o exagero de um pai que ao ver-te com 19 meses se pergunta para onde foi o tempo passado, por onde veio, por entre que dedos fugiu.
Ainda não falas - ou melhor, falando não conversas, porque de português vais sabendo apenas naum, pê-pê, que é a tua pera, bô, abuó, manman, pápá, opa, e mais meia dúzia de coisas - mas entendes o que te vou dizendo. Percebes quando vais para a escola do Tigre, que é como chamo à creche onde andas, porque lá tem na parede a pintura de bonecos gigantes do Winnie the Pooh e do seu amigo tigre, mas se te tentasse falar de economia o mais certo seria que me olhasses, me virasses costas e dissesses uma daquelas tuas frases: "otapa manupch etetei mamã".. E é por isso que te escrevo.
Não faço ideia de como será a tua vida quando leres esta carta - se alguma vez chegares a lê-la - mas importa que percebas um pouco como chegámos ao dia de hoje, e porque chegámos aqui com a necessidade de ir falando, um pouco por todo o lado, sobre economia.
Indo um pouco mais atrás, que não ao início da história, quero que saibas que durante a vida dos teus avós - ainda eu não era nascido - eles passaram por dificuldades grandes. Andavam, como toda a gente do seu tempo - e eles nasceram pelos anos de 1946 e 1947 - com folhas de jornal nos sapatos para que das solas rotas não passasse para as meias a água das poças da chuva, comeram um único ovo cozido a dividir por duas pessoas, são da geração que, vê lá tu, várias vezes teve de partilhar uma sardinha por duas e três pessoas. Naquela altura o Mundo recuperava ainda da segunda de duas guerras mundiais, e Portugal em especial vivia sem liberdade, sem acesso ao Mundo, sem - no fundo - alegria.
Num dia - 25 de Abril de 1974 - os militares saíram à rua, com cravos em vez de balas nas armas, derrubaram o regime e lançaram aquilo que hoje nos orgulhamos de dizer que é uma democracia. Tudo isto é história e talvez não te interesse muito. Talvez, por outro lado, saibas já tudo o que te conto. Não é o que importa, porque o que te quero dizer hoje é que os teus avós, ainda que exagerando, me dizem já que os dias que hoje vivemos são piores que aqueles.
Eu discordo, porque para já ainda não há (tantos) casos de miséria. Já não andam - como eu vi quando era criança - rapazes descalços a caminho das escolas. O que se passa hoje, filho, e é por isso que os teus avós acham que os tempos são piores, é que vivemos tempos de desesperança, que, a existir, é uma palavra que quer dizer, como bem entederás, que as pessoas não acreditam que venham a ter uma vida boa.
A mim, filho, o que me importa nem é saber como estarei daqui a 10 ou 20 anos. Interessa-me, isso sim, saber como crescerás tu. Hoje sei que não é conversa fiada aquilo de que por um filho damos a vida. Sinto-o todos os dias e senti-o especialmente quando, há dias, dei por mim a pensar que neste momento o País onde vivemos - este Portugal - parece encaminhar-se, tal como outros na Europa, para uma situação de total intolerância, de confronto entre as pessoas a quem tudo começa a faltar e os governantes que mais lhes vão tirando, supostamente a mando de um poder maior, que é, neste caso, o daqueles que emprestaram dinheiro a Portugal. Dizia-te eu, neste clima crescente de crispação, cheguei a pensar que um destes dias ainda há uma guerra civil. E pensei que por ti, pelo teu futuro, lá estaria a lutar. Não sei contra o quê, nem contra quem. Mas estaria. E pensei que daria a vida, sim, sem dúvidas, se isso garantisse que tu - e os irmãos que venhas a ter, e todas as crianças da tua geração, teriam uma vida melhor.
Isto é tudo complexo demais, filho, sequer para tentar explicar resumidamente. Por isso, vou fazê-lo sem detalhes - por certo quando me leres haverá já livros publicados sobre estes dias e poderás lê-los. Basicamente a situação é a seguinte: Portugal deixou a agricultura, deixou a pesca, deixou as suas indústrias e construiu autoestradas pagas pelos países amigos. Claro que com isto, deixou de ter como se alimentar e passou a mandar vir tudo de fora. Endividou-se, endividou-se e, a dada altura, deixou de ter como pagar. Ora, quem nos emprestou dinheiro para ultrapassar algumas dificuldades quer agora garantias de que paramos de endividar-nos. E o que se tem passado é que os nossos governantes - à falta de ideias para combater a corrupção e cortar na despesa - vão carregando nos impostos. Ao mesmo tempo, quase uma em cada cinco pessoas (16 por cento), está sem emprego e quem o tem vai vendo o salário diminuir, tantos são os impostos. Novos, renovados...
Cá por casa não vivemos mal. Nada nos falta, temos internet, temos uma senhora que vem cá duas horas, de vez em quando, limpar a casa - sobretudo por tu seres bebé e andares sempre pelo chão - e vamos-lhe pagando um valor que podemos suportar - com algum custo. De vez em quando eu e a tua mãe vamos até um restaurante de que gostamos, mas temos muito cuidado com as despesas - eu, por exemplo, levo sempre o jantar para o trabalho, e a tua mãe come em casa, até porque está desempregada - mas quando trabalhava levava comida - que eu, diz ela, cozinhava com mestria de chef. Vivemos de forma regrada e não gastamos mais dinheiro do que aquele que temos. No fim do mês, no entanto, também nunca sobra nada.
Sabes filho, pelas minhas contas, com os novos impostos que aí vêm vamos perder, todos os meses, o dinheiro que pagamos à senhora que limpa a casa - e mais algum. Porque não vivemos mal, eu e a tua mãe temos conversado sobre que despesas poderemos cortar. Perdoa se isto é chato para ti, mas temos de falar, não é? As despesas com a tua educação serão sempre as últimas a alterar, e outra prioridade que temos é de garantir que a senhora que limpa a casa não perde o seu trabalho - afinal, também ela tem uma filha bebé e o marido desempregado. No entanto, para lhe salvar o trabalho - e para lhe manter alguma esperança na vida - eu e a tua mãe (e tu também, de forma involuntária) vamos deixar de ir de vez em quando a restaurantes e cá por casa passaremos, cada vez mais, a cozinhar os pratos mais económicos - tens alguma coisa contra esparguente com atum?
Enquanto te escrevo esta carta, oiço-te dormir. Estás a falar enquanto dormes - eu também era assim - e nem imaginas o que se passa neste velho computador portátil que em tempos planeei trocar e que agora sei que daqui não sairá até ao malfadado dia em que deixar de trabalhar.
Sabes, filho? Depois do tal 25 de Abril de 1974 as pessoas foram conquistando direitos em Portugal. Passaram a poder expressar-se livremente, viram as suas vidas melhorar, enfim, experimentaram uma sensação de libertação e, consequentemente, de felicidade. Hoje os direitos são retirados, vamos sendo humilhados por leis que nos obrigam a trabalhar em dias feriados, não recebendo mais dinheiro por isso, e tendo como única compensação meio dia de folga extra - quando há meses nos davam um dia de folga e ainda pagavam um pouco mais.
Sabes, filho, querem fazer-me crer que sou um privilegiado. Que o meu ordenado é acima da média. E é. Mas fácil é dizê-lo. Já viste, pelo que te contei, que não somos ricos, que cortamos em todas as despesas que podemos, e que, mesmo assim, por vezes não chega. Dizem-me - dizem-nos a todos - que tem de ser assim porque andámos a viver acima das nossas possibilidades. É algo que vais aprender com o tempo: mesmo que faças tudo bem feito, se os governantes do país fizerem asneira, nunca vão dizer "desculpem, enganei-me". Vão, pelo contrário, dizer: o nosso país enganou-se, agora temos de dar uns passos atrás.
Diz quem sabe que está em curso um plano de empobrecimento do país e dos portugueses. Eu de enconomia nada sei e ainda que de forma intuitiva ande desde o início desta crise a adivihar tudo o que se vai passando, prefiro não acreditar no que imagino. Sinceramente, acho que a continuarmos assim rapidamente passamos para uma em cada quatro pessoas desempregadas, e depois para uma em cada três. Não sei sequer se não poderá acontecer-me também a mim. Ou melhor, imagino que possa acontecer. E isso, filho, não me desanima: dá-me força para pensar no que poderei fazer na vida caso venha a sofrer com o desemprego. Tenho uns quantos planos e ainda que imagine que nenhum deles funcionará, pois se o desemprego alastrar não haverá possibilidade de fazer quase nada, essa falsa sensação de segurança mantém-me a réstia de esperança necessária para não desistir já.
O que importa, filho, é que a tua geração saiba ser diferente da dos teus avós e da minha. Que alie a um sentimento ecológico um forte sentido cívico. Que seja capaz de não se deixar corromper, seja pelo que for, que faça vingar o amor sobre a finança. Sabes, filho, só não é verdade que a desesperança toma conta de mim porque tu existes. E em ti, em nós, reside a minha força para me deitar todos os dias às três da manhã e acordar às oito e meia para te levar à escola do tigre.
Desculpa-nos, filho, pelo mundo que te deixamos. Mas olha, eu sei que vocês serão capazes de vencer as dificuldades. E eu cá estarei para te ajudar a fazê-lo.
Já levas quase dois anos de vida e neste quase entra o exagero de um pai que ao ver-te com 19 meses se pergunta para onde foi o tempo passado, por onde veio, por entre que dedos fugiu.
Ainda não falas - ou melhor, falando não conversas, porque de português vais sabendo apenas naum, pê-pê, que é a tua pera, bô, abuó, manman, pápá, opa, e mais meia dúzia de coisas - mas entendes o que te vou dizendo. Percebes quando vais para a escola do Tigre, que é como chamo à creche onde andas, porque lá tem na parede a pintura de bonecos gigantes do Winnie the Pooh e do seu amigo tigre, mas se te tentasse falar de economia o mais certo seria que me olhasses, me virasses costas e dissesses uma daquelas tuas frases: "otapa manupch etetei mamã".. E é por isso que te escrevo.
Não faço ideia de como será a tua vida quando leres esta carta - se alguma vez chegares a lê-la - mas importa que percebas um pouco como chegámos ao dia de hoje, e porque chegámos aqui com a necessidade de ir falando, um pouco por todo o lado, sobre economia.
Indo um pouco mais atrás, que não ao início da história, quero que saibas que durante a vida dos teus avós - ainda eu não era nascido - eles passaram por dificuldades grandes. Andavam, como toda a gente do seu tempo - e eles nasceram pelos anos de 1946 e 1947 - com folhas de jornal nos sapatos para que das solas rotas não passasse para as meias a água das poças da chuva, comeram um único ovo cozido a dividir por duas pessoas, são da geração que, vê lá tu, várias vezes teve de partilhar uma sardinha por duas e três pessoas. Naquela altura o Mundo recuperava ainda da segunda de duas guerras mundiais, e Portugal em especial vivia sem liberdade, sem acesso ao Mundo, sem - no fundo - alegria.
Num dia - 25 de Abril de 1974 - os militares saíram à rua, com cravos em vez de balas nas armas, derrubaram o regime e lançaram aquilo que hoje nos orgulhamos de dizer que é uma democracia. Tudo isto é história e talvez não te interesse muito. Talvez, por outro lado, saibas já tudo o que te conto. Não é o que importa, porque o que te quero dizer hoje é que os teus avós, ainda que exagerando, me dizem já que os dias que hoje vivemos são piores que aqueles.
Eu discordo, porque para já ainda não há (tantos) casos de miséria. Já não andam - como eu vi quando era criança - rapazes descalços a caminho das escolas. O que se passa hoje, filho, e é por isso que os teus avós acham que os tempos são piores, é que vivemos tempos de desesperança, que, a existir, é uma palavra que quer dizer, como bem entederás, que as pessoas não acreditam que venham a ter uma vida boa.
A mim, filho, o que me importa nem é saber como estarei daqui a 10 ou 20 anos. Interessa-me, isso sim, saber como crescerás tu. Hoje sei que não é conversa fiada aquilo de que por um filho damos a vida. Sinto-o todos os dias e senti-o especialmente quando, há dias, dei por mim a pensar que neste momento o País onde vivemos - este Portugal - parece encaminhar-se, tal como outros na Europa, para uma situação de total intolerância, de confronto entre as pessoas a quem tudo começa a faltar e os governantes que mais lhes vão tirando, supostamente a mando de um poder maior, que é, neste caso, o daqueles que emprestaram dinheiro a Portugal. Dizia-te eu, neste clima crescente de crispação, cheguei a pensar que um destes dias ainda há uma guerra civil. E pensei que por ti, pelo teu futuro, lá estaria a lutar. Não sei contra o quê, nem contra quem. Mas estaria. E pensei que daria a vida, sim, sem dúvidas, se isso garantisse que tu - e os irmãos que venhas a ter, e todas as crianças da tua geração, teriam uma vida melhor.
Isto é tudo complexo demais, filho, sequer para tentar explicar resumidamente. Por isso, vou fazê-lo sem detalhes - por certo quando me leres haverá já livros publicados sobre estes dias e poderás lê-los. Basicamente a situação é a seguinte: Portugal deixou a agricultura, deixou a pesca, deixou as suas indústrias e construiu autoestradas pagas pelos países amigos. Claro que com isto, deixou de ter como se alimentar e passou a mandar vir tudo de fora. Endividou-se, endividou-se e, a dada altura, deixou de ter como pagar. Ora, quem nos emprestou dinheiro para ultrapassar algumas dificuldades quer agora garantias de que paramos de endividar-nos. E o que se tem passado é que os nossos governantes - à falta de ideias para combater a corrupção e cortar na despesa - vão carregando nos impostos. Ao mesmo tempo, quase uma em cada cinco pessoas (16 por cento), está sem emprego e quem o tem vai vendo o salário diminuir, tantos são os impostos. Novos, renovados...
Cá por casa não vivemos mal. Nada nos falta, temos internet, temos uma senhora que vem cá duas horas, de vez em quando, limpar a casa - sobretudo por tu seres bebé e andares sempre pelo chão - e vamos-lhe pagando um valor que podemos suportar - com algum custo. De vez em quando eu e a tua mãe vamos até um restaurante de que gostamos, mas temos muito cuidado com as despesas - eu, por exemplo, levo sempre o jantar para o trabalho, e a tua mãe come em casa, até porque está desempregada - mas quando trabalhava levava comida - que eu, diz ela, cozinhava com mestria de chef. Vivemos de forma regrada e não gastamos mais dinheiro do que aquele que temos. No fim do mês, no entanto, também nunca sobra nada.
Sabes filho, pelas minhas contas, com os novos impostos que aí vêm vamos perder, todos os meses, o dinheiro que pagamos à senhora que limpa a casa - e mais algum. Porque não vivemos mal, eu e a tua mãe temos conversado sobre que despesas poderemos cortar. Perdoa se isto é chato para ti, mas temos de falar, não é? As despesas com a tua educação serão sempre as últimas a alterar, e outra prioridade que temos é de garantir que a senhora que limpa a casa não perde o seu trabalho - afinal, também ela tem uma filha bebé e o marido desempregado. No entanto, para lhe salvar o trabalho - e para lhe manter alguma esperança na vida - eu e a tua mãe (e tu também, de forma involuntária) vamos deixar de ir de vez em quando a restaurantes e cá por casa passaremos, cada vez mais, a cozinhar os pratos mais económicos - tens alguma coisa contra esparguente com atum?
Enquanto te escrevo esta carta, oiço-te dormir. Estás a falar enquanto dormes - eu também era assim - e nem imaginas o que se passa neste velho computador portátil que em tempos planeei trocar e que agora sei que daqui não sairá até ao malfadado dia em que deixar de trabalhar.
Sabes, filho? Depois do tal 25 de Abril de 1974 as pessoas foram conquistando direitos em Portugal. Passaram a poder expressar-se livremente, viram as suas vidas melhorar, enfim, experimentaram uma sensação de libertação e, consequentemente, de felicidade. Hoje os direitos são retirados, vamos sendo humilhados por leis que nos obrigam a trabalhar em dias feriados, não recebendo mais dinheiro por isso, e tendo como única compensação meio dia de folga extra - quando há meses nos davam um dia de folga e ainda pagavam um pouco mais.
Sabes, filho, querem fazer-me crer que sou um privilegiado. Que o meu ordenado é acima da média. E é. Mas fácil é dizê-lo. Já viste, pelo que te contei, que não somos ricos, que cortamos em todas as despesas que podemos, e que, mesmo assim, por vezes não chega. Dizem-me - dizem-nos a todos - que tem de ser assim porque andámos a viver acima das nossas possibilidades. É algo que vais aprender com o tempo: mesmo que faças tudo bem feito, se os governantes do país fizerem asneira, nunca vão dizer "desculpem, enganei-me". Vão, pelo contrário, dizer: o nosso país enganou-se, agora temos de dar uns passos atrás.
Diz quem sabe que está em curso um plano de empobrecimento do país e dos portugueses. Eu de enconomia nada sei e ainda que de forma intuitiva ande desde o início desta crise a adivihar tudo o que se vai passando, prefiro não acreditar no que imagino. Sinceramente, acho que a continuarmos assim rapidamente passamos para uma em cada quatro pessoas desempregadas, e depois para uma em cada três. Não sei sequer se não poderá acontecer-me também a mim. Ou melhor, imagino que possa acontecer. E isso, filho, não me desanima: dá-me força para pensar no que poderei fazer na vida caso venha a sofrer com o desemprego. Tenho uns quantos planos e ainda que imagine que nenhum deles funcionará, pois se o desemprego alastrar não haverá possibilidade de fazer quase nada, essa falsa sensação de segurança mantém-me a réstia de esperança necessária para não desistir já.
O que importa, filho, é que a tua geração saiba ser diferente da dos teus avós e da minha. Que alie a um sentimento ecológico um forte sentido cívico. Que seja capaz de não se deixar corromper, seja pelo que for, que faça vingar o amor sobre a finança. Sabes, filho, só não é verdade que a desesperança toma conta de mim porque tu existes. E em ti, em nós, reside a minha força para me deitar todos os dias às três da manhã e acordar às oito e meia para te levar à escola do tigre.
Desculpa-nos, filho, pelo mundo que te deixamos. Mas olha, eu sei que vocês serão capazes de vencer as dificuldades. E eu cá estarei para te ajudar a fazê-lo.
Comentários