O rosto da vergonha
Somos, sem
excepção, o rosto da vergonha.
Na TSF uma velhota
chora aos microfones do Fórum e relata que está desempregada e o filho também;
que o marido está incapacitado – não pede subsídios, diz apenas que está
desempregada, que é como quem diz “quero trabalhar”. Claro que, velha, ninguém
lhe dará trabalho. Serve apenas para complicar as estatísticas de quem governa.
E ela chora. Claro que chora. E diz que os pais criaram 14 filhos e nunca lhes
faltou, pelo menos, sopa. Que agora, até isso lhe foi tirado. E chora. E pede
que se fiscalize quem precisa de apoio. Que se fiscalize. Não que se dê à
louca. Que se fiscalize. Como quem diz: estou em desespero e ninguém me
socorre. E chora. E pede desculpa. Desculpa de estar viva, provavelmente, de
tanto nos pesar na dívida. De tão dispendiosa nos ser a sua sopa. A nós que
trabalhamos, a nós que até chegamos tarde a casa por tanto trabalharmos. E que
nos vemos aflitos para pagar as escolas dos nossos filhos e as prestações dos
nossos humildes carros. E que, agarrados aos nossos tablets e smartphones, bem
os topamos, a eles, sim a eles, que dizem que são pobres e andam aí de BMW, a
ganhar mais que nós. Dizemos. Sim, nós somos o rosto da vergonha. Ou da falta
dela. Porque não queremos mesmo ver que enquanto publicamos na internet
fotografias dos restaurantes caros a que vamos, das praias paradisíacas a que
chegamos, tudo fruto do nosso trabalho, temos aqui ao lado – e não falo de
Portugal nem de portugueses, antes de pessoas e de Mundo – temos, dizia, aqui
ao lado quem queira mas não trabalhe. Quem passe fome.
E continuamos todos a dizer que sim, que esses devem ser apoiados, mas vamos concordando, e até censurando quem discorda, que há por aí muita malandragem – é assim que falamos dos pobres.
E continuamos todos a dizer que sim, que esses devem ser apoiados, mas vamos concordando, e até censurando quem discorda, que há por aí muita malandragem – é assim que falamos dos pobres.
E as notícias
passam em rodapé, mas como não somos nós os desempregados que têm de gerir uma
casa com um subsídio de desemprego de 600 euros por mês - felizes os que têm subsídio de desemprego e
mais ainda os que o têm de 600 euros! – nem lhes ligamos. «Olha, parece que têm
de devolver este mês 70 euros à Segurança Social. Diz que é uma decisão tomada
em julho e que tem efeitos retroactivos. Parece que não foi aplicada por erro».
E claro que o erro foi apenas o facto de haver eleições autárquicas. Mas é tudo
normal. Tire-se então os 70 euros aos que ganham 600. É bem feito: andaram a
viver dois meses com mais dinheiro do que deviam. Se tivessem poupado agora não
se queixavam, mas não, pobre é assim: quando se apanha com 600 euros vai logo
gastar sem pensar!»
E nem reparamos,
talvez por estarmos a olhar para os ecrãs dos nossos smartphones, que alguns
dos nossos amigos estão já desempregados há muito tempo. Nem parámos para
reparar que antigamente todos conhecíamos o sobrinho de alguém que procurava
emprego e que agora, na verdade, no nosso núcleo de amigos temos já dois ou
três casos aflitivos. E é por isso que somos o rosto da vergonha. Porque provavelmente
os nossos amigos nunca telefonariam para a TSF a expor o seu desespero. Mas
talvez um dia ainda os ouçamos pedir desculpa por tanto nos pesarem...
Somos o rosto da
vergonha. Todos. Que vergonha. Acordem!
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