A Dama (e o Vagabundo)

O primeiro cão de que tenho memória é o Dick. Nunca parei para pensar como se escreveria o seu nome, até porque na altura nem ler sabia, mas o Dick era um cão preto, rafeiro, porte médio, que vivia em casa dos meus avós Dulce e Luís. Era o cão mais pacato da história.

 Os putos saltavam-lhe para cima e faziam dele cavalo e o pobre Dick nem ladrava. Andava até ao canto onde ficava a sua manta e deitava-se.

Lembro-me de outros cães que me marcaram. O Taipan, um boxer maravilhoso, do Duffy, um louco que eu ia buscar a casa dos meus avós para passear e que tratava como meu. E de mais uns quantos. Mas no top-3 dos que mais me marcaram estão estes. Que ainda hoje admiro e tenho por amigos, embora há muito tenham ido para Timbuktu. 

 Dito isto, importa explicar que sempre, na minha vida, o amor de/e por um cão foi algo presente. Não querendo dizer que sou boa pessoa, acho que serei melhor pelo que aprendi com os animais. O respeito, a lealdade e a confiança. A amizade, claro.

Há 15 dias, após um fim de semana fora de casa, quando regressávamos deparámo-nos com cenário trágico.

 Dia de intenso calor, e, no meio de estrada que os condutores tomam por autoestrada, a cortar mato cerrado de um lado e de outro, vimos um cão. Atravessava a dita estrada desnorteado, rabo entre as pernas, visivelmente cansado. Até o nosso mais velho percebeu que algo ali não batia bem. E a sua voz, saída de coração puro, acabou-nos com as dúvidas. Tínhamos de voltar atrás. Assim o fizemos.

Volta inteira na rotunda mais adiante e toca de ir à procura do animal (pré)moribundo.

 Lá o achámos. Parámos na berma e chamámo-lo (na altura não sabíamos ainda que era uma "ela"). Demos-lhe água, primeiro. Muita água. E depois croquetes. E depois rissóis. E fiambre. E queijo. Até que só restava peixe cozido. Três ou quatro lombos, que a míuda comeu sem grande prazer.

Era evidente no olhar dela que precisava de ajuda. Ao mesmo tempo que, obstinada, só queria seguir o seu caminho. Era vísivel que lhe tinham tirado há dias a coleira (ainda marcada no pelo). Tinha sido abandonada, mas só tinha uma preocupação: encontrar a sua casa. Estava grata, percebia-se, mas queria ir à sua vida.

 Agarrou num pedaço de peixe pela boca e levou-o até um local que lhe pareceu seguro. Aí enterrou-o, antes de se preparar para mergulhar no mato onde, achava ela, havia de encontrar a sua casa. Eu, que já tinha falado ao telefone com a presidente da Associação de Animais lá da terra, tinha bem claro que não podia deixá-la mergulhar no mato. E chamei-a, com aquela voz de festa que fazemos aos cães e aos bebés quando queremos que eles acreditem que está tudo bem. 

E ela olhou-me nos olhos. E correu para mim. Acho que foi nesse momento que me conquistou.

 Mas, olhando para trás, talvez esteja errado. Pode mesmo ter sido quando a vi atravessar a estrada. Ou uma semana depois. Ou ontem. mas já lá vamos... Havia duas coisas evidentes. Não podíamos trazê-la no carro durante mais de uma hora (como viria a provar-se pouco depois) e tínhamos de levá-la até um abrigo, ou acabaria por morrer. Tentámos, tentámos e tentámos metê-la no carro. Ela não resistia a nada, deixava segurar-lhe as patas (primeiro as da frente e depois as de trás) e metê-la no carro, mas quando sentia que ia ficar presa metia o focinho a jeito de impedir a porta de fechar. 

Quando estávamos prestes a desistir, entrámos no carro e começámos a andar. E aí ela conquistou-me pela segunda (ou terceira) vez. Começou a seguir-nos. De repente tínhamos sido adotados...

 A SS teve ideia brilhante. "E se trocássemos? Eu conduzo e tu vais com ela no lugar do pendura?".

Resultou. Ela entrou no carro e lá a levámos ao abrigo local onde nos disseram que nem um ano teria ainda. Eu, que cresci apaixonado por cães, admito que logo pensei que gostaria de ficar com aquela cadela (na altura ainda nem sabia que era cadela), mas o assunto estava fora de hipótese. Fiz uma doação à Associação (mais que o valor anual cobrado aos sócios) e, admito, daí lavei as mãos. Estava entregue. Isto apesar de no caminho de regresso a Lisboa o mais velho e a mais nova terem soltado lágrimas de profunda tristeza. Que tínhamos de trazer a cadela.

 Que abdicavam de jogar PlayStation, telemóvel e, com jeito, até de ver Teen Titans na TV. Entre mil conversas sobre o animal, o seu aspeto, etc, a mais nova lá disse: "Dama, ela chama-se Dama".



 Confesso: eu sempre sonhei ter um cão. E quando digo sempre digo... sempre, como em "desde que me lembro de mim". Mas também sempre senti que para ter um cão, esse haveria de escolher-me. Sabem quando um cão nos segue até casa, e não nos larga, e continua a implorar colo?

Acho que é isso que sinto relativamente à Dama. 

Passaram duas semanas desde que a encontrámos e ela tem estado presente na nossa vida desde então. Durante a primeira semana, não houve dia em que não pensasse nela. E a verdade é que ao contrário do normal, acabei por "facilitar" uma ida à terra no fim de semana seguinte porque queria ver a Dama.

Lá fomos ao abrigo, sábado de manhã, e a encomenda saiu melhor que o previsto. Dei por mim a olhar em volta, desesperado, à procura dela e sem a identificar entre alguns 50 animais desesperados por atenção, senti - quando a presidenta ma apontou - que desde sempre a Dama estivera a olhar para nós.

Emocionei-me e aproximei-me. Ela, na "jaula" com outro cão, nunca tinha tirado os olhos de nós. Como se nos reconhecesse - dizem que sim. Mal nos aproximámos, eu a SS, a Dama desatou a lamber-nos as mãos. Sossegada, feliz por ver-nos, a querer trepar as grades, do lado oposto ao nosso, para nos dizer olá e manifestar a gratidão.

Os miúdos, fascinados - a mais nova doida e o mais velho com medo - lá a foram procurando, mas ela reagia de forma distinta. A nós, só beijos e festas, a eles orelha encolhida e "faz lá o que quiseres que eu sou um bicho esperto e percebo que não se discute com crianças".

E nesse instante a Dama deu-me o segundo, ou terceiro, ou décimo tiro fatal. Qual São Valentim. 

Este é o cão que eu sempre quis ter. Um animal amigo, sem ser chato. Um animal próximo sem sufocar. Um animal inteligente e leal. Não tenho, agora, dúvidas. A Dama é o animal que desde os meus 10 anos quero ter. Sinto-a como parte da nossa família, por mais estranho que possa parecer. E por ela estou disposto a tudo. O que não deixa de ser irónico pois, afinal de contas, por ela posso nada...



Os putos choraram baba e ranho porque não trouxeram a Dama para casa. E quando digo baba e ranho digo... "baba e ranho". Fiz-me de forte. A mãe não quer, porque os cães largam pelo, e porque a mãe acha que vai correr mal. E se há coisa importante para mim é "a mãe". Fora de gozo. A SS é para mim a maior fonte de equilibrio e de felicidade. E jamais farei algo na vida que ela não aprove.

Assim, o meu sonho de ter um cão e a certeza que hoje tenho de a Dama ser "o cão" que sempre quis, é algo irrelevante face à vontade dela.

Ofereci-me para levar a Dama à rua todos os dias e a horas fixas (para que ela não tenha de fazê-lo) e, se preciso fosse, até comia menos para que a Dama se alimentasse. Mas ela insiste que a Dama, e todos os cães, largam muito pelo e que não quer ter mais trabalho e eu não tento sequer convencê-la.

Acho que não há dia que passe, aliás cada duas horas, em que não pense na Dama.

O meu coração sangra. E sangra porque realisticamente, sei, hoje, que ela provavelmente nunca terá a sorte de ser adotada. Para mim é especial, e para ela nós somos Deuses, mas quem não passou por isto com ela ao chegar ao abrigo mais facilmente se apaixona por animal mais bonito. (como se houvesse animal mais belo que a Dama...).

Não sei mais o que fazer. A sério. Tenho 47 anos. A Dama menos de um. Ela há de durar uns 15/16 anos. Eu, espero que mais. Sinto que dificilmente haverá outro momento na vida para ser adotado por um cão, mas também não vejo como conseguir um consenso. Sim, porque ter 3/4 dos votos serve de pouco numa vida em que a SS tem poder de veto sobre tudo.



Ainda acreditei que uma prima pudesse ficar com a Dama. Afinal, andava à procura de cão desta idade. Mas não. Ainda tive uma esperança que blogger conhecida a abraçasse, após apelo pela própria lançado. Mas a sua lista ia já em 1500 candidatos.

Acho mesmo: ninguém vai quer a Dama. Ou melhor, tirando eu e os meus filhos, a Dama não será a prioridade de quem quer que seja. Nem ladrar ela ladra, a não ser quando nos quis alertar de que era foleiro estar a fazer festas a outros cães quando a fomos visitar.

Admito. Não há dia em que não me venham as lágrimas aos olhos a pensar na Dama. Na sua solidão. No seu amor a nós. No que lhe foi destinado. E na convicção que tenho de que naquele abrigo ninguém a escolherá.

Dei por mim a pensar, hoje, que se calhar devia tê-la deixado morrer desidratada. Para não passar a vida presa entre estas grades. Para eu não passar a vida a pensar nela.

Desespero, sim. De amor. De paixão. De solidão. Dela e da minha alma.

Ninguém nos salva?

PS: Dito isto, o vagabundo (afetivo) sou eu...

 PS 2: A pandemia não passou, mas tornou-se irrelevante escrever sobre ela. As novidades são as de sempre. Nada se sabe sobre o vírus e ninguém faz puto ideia de como travá-lo, ou como proteger-nos; as empresas não tarda rebentam e quem não morrer de Covid morre de fome. É esperar por um milagre da ciência, e que rapidamente chegue a vacina

Comentários

Vanita disse…
Há um aspirador ótimo da Rowenta que apanha tudo, só não apanha os cacos do coração despedaçado. Não vou mentir: há momentos em que nos arrependemos. São tão raros, que são o sal que tempera a coisa. Não preciso de te convencer a ti mas, de quem nunca quis um cão em casa, segue uma mensagem rendida: a minha vida não seria a mesma sem a nossa Sasha. É como um filho só que este não quer sair de casa nem ir para a universidade. Não há nada que se compare ao amor que os animais nos dão. Ninguém se lembra dos pêlos.

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