Para um filho, começando por um pai...
Não há outra forma de dizê-lo, pai: anteontem, a mãe morreu.
Haverá? Foi-se, partiu, deixou-nos, faleceu, desencarnou, não resistiu... Que
diferença faz?
Foi uma maldita pneumonia que a levou, eis o que constará
dos relatórios dos médicos. Que o líquido nos pulmões a enfraqueceu, que o
coração ficou fraco, que os rins pararam, que o corpo não conseguiu reagir à
medicação. Tretas. Quer dizer, tudo verdade, mas tretas. Não foi nada disso.
Filho, a tua avó não era deste mundo. Regressou a casa,
apenas. Era um anjo entre nós, e dela tenho agora tanto para te contar que já
sei que nunca tal caberá na pequenez dos meus dedos, nem na velocidade do meu
pensamento...
Poderia começar por dizer-te, filho, que a tua avó Zé, a
buó, como lhe chamas, era o tipo de pessoa que dava as camisolas caras, que
recebia de presente, a pessoas que delas mais precisavam, que o dizia,
orgulhosa e sem problemas, a quem lhas dava. Que a tua avó, filho, era o género
de pessoa que saía de casa, todos os dias, para mais uma missa, com uma lista
de nomes pelos quais rezaria, para que de nenhum se esquecesse. Uns porque não
tinham emprego, outros porque andavam doentes, outros ainda porque o amor lhes
corria mal e o casamento se desfazia, outros ainda porque andavam longe de Deus
e da Igreja, algo que tanto a afligia...
Desde que nasceste, filho, ela só queria ver-te baptizado.
Rezou por isso. E a 13 de Maio, quando aconteceu, encheu-se de brilho,
encheu-se de alegria. E desde então não voltei a vê-la triste.
A tua avó, filho, ia aos 66 anos para o chão da sala de
nossa casa. Brincava contigo. Era até mais criança que tu. Fazia sons para te
entreter, para te cativar o olhar. Queria, a cada instante, que soubesses o
quanto te ama. Partiu, ironicamente, no momento em que tu, impoluto, melhor
compreendes o que é o amor, mas momento esse do qual não guardarás memórias
nítidas, se é que algumas guardarás.
Deu tudo, ela. A todos, filho. Fez asneiras, cometeu os seus
erros, alguns absurdos. Sempre a vi pedir desculpas. Soube ser criança, mas
soube ser mãe. Minha, claro. Mas de tantas outras pessoas que foi tocando ao
longo da vida.
Neste momento, filho, há poucas coisas que possa contar-te
sobre a tua avó Zé que possam caber num texto destes. Do meu coração saltam
histórias atrás de histórias, e os dedos não acompanham o que o cérebro tentar
guardar. Importa falar do caminho que eu e ela fazíamos de nossa casa para ados
pais dela, meus avós, aos sábados de manhã para lá irmos ver os episódios do
Flash Gordon na única televisão da família que já era a cores? Importa dizer
que todo o percurso era calculado em função dos cães pelos quais teríamos de
passar, já que ela tinha pavor dos mesmos? (sim, em criança tinha sido
perseguida por um cão e deixou-lhe o saco com a carne que tinha buscar ao talho
- está bom de ver quanto de desespero que isso provocou em casa...). Ou será
melhor dizer que por fazermos tal caminho um dia encontrámos uma nota (na
altura bastante dinheiro) no chão e ela me obrigou a perguntar a uma pessoa que
por ali estava se era dela? (escusado será dizer que a pessoa disse logo que
sim, que cá por casa esse mês continuou a sobrar ao ordenado do teu avô e que
eu aprendi que mesmo podendo ficar numa situação melhor, não podemos nunca
deixar de agir como é suposto agir-se).
Sabes, filho, da tua avó aprendi o que é ser-se gente e
estar-se em estado puro de bondade. Aprendi o que é um adulto saber fazer-se
criança e com isso conquistar o Mundo.
Sabes, filho, da tua avó aprendi muita coisa, a ela irei
beber muitos dos valores que quero passar-te. Dela espero que possa ser
inspiração para ti, que ainda tens o teu coração em estado puro, como o dela.
E sabes, filho, pela igreja, para se despedirem dela,
passaram mais de 300 pessoas. Muitas delas traziam histórias que me
surpreenderam sobre a minha mãe. Todas elas de bondade, todas elas de entrega.
Surpresa mesmo, filho. Não por desconhecer o lado caridoso da tua avó, mas sim
por não saber que era possível alguém tão pequeno tocar de forma tão intensa
tantas vidas.
E assim se explica, filho, aquela jovem de vinte anos que eu
nunca tinha visto e que passou todo o tempo a chorar, desesperada, pela perda
de uma amiga.
Não consegui saber quem era, de onde vinha, com quem estava,
ainda que tenhamos falado. Sei, no entanto, que foi alguém que viu a tua avó
fazer o bem. E por isso dela tem já saudades. Como todos nós teremos...
O vazio da perda, o buraco da saudade, já percebi, vão
acompanhar-me até ao fim da vida. Da minha, pois claro, a esperança de revê-la
irá até muito depois da morte. Da minha, claro. E o orgulho de ter sido logo
minha, esta mãe tão excepcional, aquecer-me. Todos os dias. Da minha vida,
isso...
"Recebe Senhor,
pelas mãos da minha Mãe,
a doação total
da minha liberdade soberana.
Toma a memória, os sentidos, a inteligência,
recebe tudo como prova de amor.
pelas mãos da minha Mãe,
a doação total
da minha liberdade soberana.
Toma a memória, os sentidos, a inteligência,
recebe tudo como prova de amor.
Toma o coração inteiro, toda a vontade
e, assim, sacia em mim
o verdadeiro amor;
a minha maior felicidade
é devolver-te sem reservas
tudo o que me deste."
e, assim, sacia em mim
o verdadeiro amor;
a minha maior felicidade
é devolver-te sem reservas
tudo o que me deste."
Pe. José Kentenich, em "Rumo Ao Céu"
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