Do relvado que já não existe

Ali o Djão fintou o Frasco a meio campo antes de rematar forte para o fundo da baliza. Era o maior relvado do Mundo. O melhor também. Verdinho como poucos, sim porque noutros estádios até azuis os havia. E verdinho era só aquele. Não era daqueles relvados bem cortados, não. Era, pelo contrário, em versão relvado, os cabelos encarapinhados do preto que andava pelas praias da Costa da Caparica a gritar Ééééééé o Oláááááá Xquinhoooo, Ééééééé frutóóóóescolate.
Antes de ser o campo em que árbitros invalidaram golos com o até então inédito pretexto de que a bola passara por baixo da baliza - é verdade, posso jurá-lo, ainda que as cassetes onde os relatos ficavam gravados já tenham todas desaparecido - foi estrada que ligava cidades, meio esburacada, mas ainda assim capaz de receber a Volta a Portugal em bicicleta. Anos antes - nem sei já dizer quantos - naqueles troços disputaram-se corridas de Fórmula 1.
É incrível como um local pode conter tanta história. Não só desportiva note-se. As batalhas que ali se travaram? Mano a mano, até o último homem cair. Sem rendições nem negociações.
Hoje voltei lá e já não havia relva alguma. O que antes me parecia gigante há muito passou a ser pequeno. De um Mundo inteiro se fez, à conta de os anos passarem por mim, uma simples casa simples. Pequena.
Nos corredores por onde fui feliz, hoje gatinhei e fiz corridas com o meu filho. Não havia a relva do passado, que a alcatifa há muito foi substituída por chão flutuante a imitar madeira, mas em cada recanto lá estava a memória da minha adversária nos jogos de hóquei, da comandante dos exércitos inimigos que umas vezes tinha mais pontaria que eu com o berlinde e derrubava os meus soldados de plástico e noutras se deixava vencer - não sei se pela minha perícia, se pelo cansaço de tanto tempo ali de joelhos.
E da porta do meu quarto, sentado a empurrar os carros do G. para a sala onde o que sobra da família conversava e via televisão, fiquei entre o hoje e o ontem, naquele vazio da saudade e no sorriso do presente.
Quem sabe, um dia o G. vai lembrar-se de quanto foi feliz naqueles corredores. Quem sabe até não vai lembrar-se que em vez de chão flutuante havia um relvado onde marcou os seus primeiros golos?
Já lá vão quase 13 meses e há instantes em que me pareces mais viva e mais presente que nunca, mãe. Lembro-me por vezes de como me cansava - mas até sorria - por cada telefonema que fazia para vossa casa. Primeiro falava com o pai, que me atendia, e depois vinhas tu, que me fazias todas as perguntas de novo, a quem tudo contava outra vez. Às vezes já cansado, outras só a sorrir por dentro.
Porque mãe, naqueles relvados e naquelas estradas e naqueles campos de batalha, estivemos sempre do mesmo lado, afinal de contas. E era isso que celebrávamos depois, quando sentados à mesa, já eu mais velho, discutíamos os meus direitos de adolescente. Lembro-me de que já então a grande difculdade que tinha era a de convencer-te (e bem vistas as coisas nem era assim tão grande). A partir de então, o caminho ficava aberto. Tu falavas com o pai e, mais dia menos dia, lá me vinha autorização para o que reivindicava.
Hoje foi ao relvado de há vários anos, mãe. E vê lá tu: vi-me lá, nos risos e na alegria do G. E por isso te agradeço, mais uma vez, tudo o que foste... Tudo o que me deste.

Comentários

Marta disse…
Do meu coração de mãe, para o teu olhar de pai sobre o teu amor de filho: obrigada por teres escrito. É tão terno e tão lindo.

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