Da geração rasca à era da impreparação

Quando em 1994 Vicente Jorge Silva falou de uma "geração rasca", aquela que protestava contra  a ministra da educação Manuela Ferreira Leite, Portugal dividiu-se.

Passados 20 anos, esta geração supostamente rasca, está agora a chegar aos 40 anos, e o que se percebe agora é que Vicente Jorge Silva errou. Por simpatia, quero eu dizer. Ao classificar aqueles jovens como rasca - especificamente aqueles, daquela geração (rasca, disse ele) - colocou todas as outras gerações de fora.

Ou seja: quem os antecedeu seria, então, de gabarito, por oposição à rasquice destes. A vida tem-se encarregado de provar que o que há 20 anos parecia um bom conceito - ou pelo menos um bom ponto de partida para a discussão - era algo que surgia já 20 anos atrasado, também.

Eu explico: ao atingirem 40 anos por esta altura (uns 45, outros 35) os jovens daquela suposta geração rasca estariam, supostamente, a atingir agora o pico das respectivas carreiras. Teriam passado a fase da aprendizagem e consolidação, seriam agora experientes trabalhadores. Uns operários, outros gestores, outros até patrões.

Acontece que o descalabro cultural vai-nos entrando no dia a dia sem pedir licença, invadindo-nos desde os cartazes publicitários (vide os erros de português da Olá e da Imaginarium - provas-te em vez de provaste...) à forma amadora como tudo vai sendo decidido, inclusive em instituições com responsabilidades. E não tem a ver com uma idade (ou geração), antes com um arrastar de décadas e décadas.

Exemplos não faltam. Começando pelo futebol (até para fugir às polémicas da política, a Seguro e a Passos Coelho): a liga aprova uma alteração aos regulamentos de competição que prevê o alargamento da primeira e segunda divisões. Faz contas e mais contas. Mesmo avisada, que o foi, insiste que tudo está bem e vai funcionar. Chega ao fim da época e vê-se obrigada a convidar o Atlético (que tinha descido) a continuar, porque, afinal, faltava uma equipa para preencher os quadros competivos (quem diria que a matemática afinal só é uma ciência exacta quando bem aplicada?)

Ou a banca: como explicar que instituições bancárias cobrem comissões ilegais aquando da liquidação de um crédito e, depois de confrontadas com carta que lhes expõe o erro, respondam simplesmente algo do género: ah, pois foi, enganámo-nos, desculpe lá o nosso erro?

Ou os jornais: a crise da Comunicação Social ainda ontem ditou 160 despedimentos num grupo de jornais que tem, entre outros, títulos como o Diário de Notícias, a TSF, o Jornal de  Notícias e O Jogo. Lá, como em tantos outros lados, a crise traduz-se em menos jornais vendidos e em quebras de receitas publicitárias. Incrivelmente, as mesmas empresas que veem no despedimento de 160 funcionários a solução para os problemas, são as mesmas que mantêm há anos sem conta os mesmos directores (nas redacções, na publicidade, no marketing, etc). E que lhes pedem até para que sejam eles a escolher quem despedir. A lógica da coisa aproxima-se desta que agora inventarei: é como o director de um hospital fazer as escalas de médicos para o bloco operatório e, estranhando a quantidade de mortes por negligência, manter sempre os mesmos cirurgiões ao serviço e despedir as equipas de enfermeiros - note-se que não falei de substituir, antes de despedir. Que é o que se passa nos jornais. Portanto, despedindo os enfermeiros, os médicos que eram maus a operar passam a ser bons, é isso?

Ou nas grandes empresas: aqui a ordem é a formatação. Do serviço (tudo bem, é lá um problema deles e quem não gostar pode sempre procurar alternativas) ao tratamento do cliente. Nos últimos tempos dei por mim a tentar protestar contra o que considero ser mau serviço: nomeadamente na Nespresso e no Meo (serviço móvel). Protestei por escrito dizendo o que motivava a reclamação. A resposta que obtive: a enumeração dos meus protestos. Nem uma ideia mais, que não a de repetir tudo aquilo de que me queixei, dizendo que é assim, ponto...

Tudo isto para argumentar que o problema desta sociedade não é - está longe de ser - uma suposta geração rasca. Vejo, entre os outros quarentões, gente de todos os calibres. Génios, criativos, rigorosos, baldas, preguiçosos. Há de tudo, claro. Como havia na geração do Vicente Jorge Silva e como há nas dos que agora têm 20 anos, ou 10. Ou que ontem nasceram.

O grande problema é, actualmente, o da impreparação. O alheamento da realidade, leva a um alheamento do conhecimento. Com tanto mundo ao dispor, estamos cada vez mais centrados no microcosmos da nossa existência. Em Portugal pensa-se cada vez menos. Discute-se cada vez menos. Substituiu-se, até, a lógica da discussão filosófica pela troca de argumentos dos quais não se arreda pé.

Mais: nas empresas, quem manda, seja mais novo ou mais velho, está - na maioria dos casos - impreparado. Sente-se no centro do Mundo e não questiona o que o rodeia. Só um empresário horrível (como o são os que despedem 160 trabalhadores) acha que o corte puro e simples fará o seu negócio florescer. Só alguém alheado da realidade não percebe que a lógica do negócio vai sendo igual em todo o lado. Um jornal e um restaurante, por exemplo, obedecem à mesma filosofia. E quem me ajuda a perceber o que acontece a um restaurante de hamburgueres com um patrão destes?
Está bom de ver. Há quebra nas receitas e logo um génio dita: «isto está mal porque as pessoas já não querem hamburgueres. Agora, no tempo digital, fazem-nos em casa com o microondas e os restaurantes estão condenados à morte». A sua primeira solução é reduzir o tamanho dos burgueres. De 250 gramas passa-os para 200. E corta também na mostarda. Em vez de savora, agora vai uma de marca branca. (os jornais reduziram quase todos o número de páginas que dão a ler aos leitores). Quando há nova quebra de vendas de hamburgueres (porque as pessoas se sentem enganadas com o novo tamanho dos mesmos) logo o génio sorri e saca da sua lúcida análise para a justificar: «estão a ver? é a prova de que as pessoas não querem comer mais aqui. Preferem levar para casa e comer aquecido no microondas». (o maior problema desta gente é que vê o Mundo pela sua medida - estão no centro de tudo e o que pensam é que todos pensam, pelo menos assim acreditam...). Como a quebra das vendas não é lá muito boa para o negócio, decidem então dar o passo seguinte. Em vez de 10 empregados de mesa passam a ter apenas 3. Afinal, há menos clientes, logo podem esperar um pouco mais. Já agora, corte-se também no alho e nos coentros, que isto está caro e não dá para luxos. O sal, esse, passa a ser opcional. E se o cliente não pedir, não se oferece, que aquilo é caro. Os poucos que ainda eram clientes, curiosamente não ficam muito felizes com a ideia de passarem a esperar o dobro do tempo pela comida. E que quando esta chegue tenha exactamente o mesmo sabor da que poderiam ter feito, tranquilamente em casa, aquecendo-a no microondas.
O estúpido fica feliz porque sente que acertou em cheio - «eu não vos disse que as pessoas agora preferiam comer os hamburgueres no microondas e não no restaurante?» - e nem se apercebe de que foi ele a empurrar a casa para a falência e os clientes para o microondas.

É impreparação, meus caros. É impreparação... Ou então há uma loucura generalizada e eu tenho o supremo azar de estar lúcido no meio disto.

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