Haaghhh! - Da memória

Onde pode levar-nos um cheiro?

No caso, o cheiro a chá preto e à torrada bem tostada em panrico untada com becel

A um som! A mim a um som. Eu explico:

Esse é o cheiro de uma salinha pequenina. Tão pequenina e tão cheia de livros, que tudo nela era gigantesco. Pelo menos aos olhos de um miúdo que começa a aprender o sotaque british e o vocabulário - que há de valer-lhe ser dos melhores da turma em inglês e que, se não fosse preguiçoso, lhe valeria notas altas, como os outros melhores.

Nessa sala, de alcatifa creme, ou beige, ou lá como se diz, há uma cadeira de doutor (daqueles doutores que lêem muito, não dos que mandam meter a língua de fora e dizer demoradamente aaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrr) e uma secretária gigantesca. Cheia de livros. E de documentos. E de desenhos. E, ainda, de um busto em barro do homem hábil que aqui se sentava a trabalhar. Um busto em barro que tinha sido feito pelo próprio e que conservava um tom acastanhado por nunca ter ido a cozer.

Lá do fundo - da porta da cozinha cujo chão era em xadrez preto e branco, e de onde já não se via a porta da dispensa onde o homem que fazia bustos e lia muito como os doutores marcava a caneta a altura dos netos. Aquela mesma porta com buracos onde cabiam dedos que tentavam fugir às mãos caçadoras que ficavam do outro lado - lá bem do fundo já se via uma tempestade de caracóis na cabeça da senhora que se vestia de azul na moda dos anos 70.

Era essa senhora, sempre muito pintada - com pó de arroz e baton, o mesmo baton que se colava na imagem de Cristo que ela diariamente beijava, levando os netos a pensarem até aos 15 anos que aqueles rios vermelhos eram reproduções do sangue de Cristo - essa senhora sorria como todos os dias sorria, isto enquanto pousava na tal mesa grande onde estava o busto, uma bandeja ferrugenta e o prato castanho transparente com duas torradas forradas a becel - uma muito queimada, outra normal, que o rapaz que aprendia inglês era mais pelas clarinhas - e duas chávenas do mesmo vidro com chá bem quente.

Esse cheiro que hoje me transporta para esse local onde ainda vou quando durmo e sonho traz à memória um som. Como o doutor era dos que liam e não dos que mandavam fazer os malabarismos já referidos com a boca também o ahhh que se ouvia era diferente. Mais curto, muito mais curto. E firme. Repetido a cada vez que a chávena a ferver lhe ia à boca e conseguia passar a água com a infusão por uma nesga dos lábios. Com agá no fim. Assim como se reproduziria por escrito se fosse possível:

haaaaghhhh

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