De como se lida com a morte na família dos outros
Lembro-me de uma crónica do Lobo Antunes sobre o médico que lhe comunicou os resultados da análise: tinha cancro. Mas o médico dizia-o como se dissesse que já não havia bilhetes para o concerto de Caetano Veloso. Pior. Enquanto combinava ao telefone uma jantarada com um amigo. Pausa, ah, o senhor tem cancro...
Quando no Natal passado vim de urgência para acompanhar o meu pai e ver a minha mãe, internada de urgência no hospital, fomos informados pelos médicos de que nem um milagre a manteria viva. Era uma questão de tempo, até se apagar, lentamente como uma vela.
Antes de mais, sempre que me lembro disso, lembro-me do choque que senti. Parecia impossível, mas acontecia. A frio, sem anestesia para mim e para o meu pai, que, abraçados tentámos digerir a notícia, acompanhados por outros dois tios...
Nunca esquecerei de que à pergunta que me era feita por SMS «Então?» respondia apenas «(...)», incapaz de verbalizar o que acabara de acontecer.
Lembro-me também, e nunca quero esquecê-lo, de que não tive coragem para ficar ao lado dela, até que a vela se apagasse. Hoje olho para trás e sinto-me cobarde, não consigo perdoar-me (e agora nada há a fazer, é algo que vou sempre carregar) por a ter deixado ali a morrer sozinha... (confesso que na altura quis apenas proteger o meu pai e nunca falei disto com ele, nem hei de falar - acredito que se sinta hoje tão frustrado pela decisão que tomámos então como eu me sinto).
Adiante. A verdade é que depois de nos terem dito que seria, talvez, uma questão de meia-hora, uma hora, acabaram por vir dizer-nos que ela tinha reagido bem a um novo esforço. E que a partir daí não fazia sentido ficarmos no Hospital à espera. Poderia ainda morrer, sim, mas não se sabia ao certo se isso aconteceria. E, se acontesse, nada faria prever que acontecesse nas horas mais próximas.
Fomos então para casa, sabendo que quando alguém morre num hospital durante a noite os familiares são convocados por telefone, bem cedo no novo dia, para irem ao hospital.
Lembro-me de ter dormido num misto de esperança na recuperação e fé de que o telefone não tocasse.
A verdade é que tocou. Não sei a que horas, mas acho que antes das oito.
O meu pai, que tinha dormido em nossa casa, acordou-me. Sabíamos que íamos sair de casa para ouvir a notícia que não queríamos. Mas lá íamos. Fomos o caminho quase todo em silêncio. Nem uma palavra.
Lembro-me de, ao chegar, dizer, e querer acreditar, claro: «vamos ser positivos, talvez nos tenham chamado para dizer que já está consciente, que recuperou bem». Na verdade, não acreditava, nem o meu pai.
E assim entrámos na sala da espera do serviço de cuidados intensivos (pomposamente chamado com outro nome qualquer, tenho a certeza, mas não me recordo de qual).
Só nós lá estávamos. A funcionária administrativa haveria de entrar pelas nove horas, se não estou em erro.
Chegou um pouco antes, 8h55, talvez. Vinha ensonada, com cara de "ressaca" pós natal. Era dia 26 e o mundo dela tinha, espero eu, sido de alegria nos dias anteriores.
Surpreendida (talvez por ser dia 26) chegou, deixou a mala no seu lugar, e foi tomar um café. Afinal, ainda não era hora de entrar... Só quando chegou a hora de pegar ao trabalho com ela conversámos. Explicámos ao que vínhamos (obviamente não era preciso, se ali estávamos era porque tínhamos sido chamados para nos ser comunicado o óbito). Como estava, ficou. Arrumou mais meia dúzia de coisas e só passados mais uns minutos informou os médicos de que ali estávamos (antes esperámos sem ter como dizer...).
Para ela, estarmos ali à espera da confirmação da morte de uma das pessoas que mais amamos era quase o mesmo que estarmos à espera de saber a que horas abria o bar...
Não me lembro da cara dela, nem da idade, nem da roupa. Já o que nunca esquecerei é da cara da médica e da enfermeira que a acompanhava quando finalmente nos disseram o que já sabíamos. Nem de como a enfermeira chorou ao mesmo tempo que nós, ao ver-nos chorar...
Como é possível duas pessoas terem reações tão diferentes perante a morte do familiar de alguém que está à sua frente? Não sei. Nem tão pouco quero sugerir que aquela pessoa é fria ou insensível - não a conheço, não sei de nada... Mas sei que o que aqui acabo de relatar é algo que nunca hei de (nem quero) esquecer...
Quando no Natal passado vim de urgência para acompanhar o meu pai e ver a minha mãe, internada de urgência no hospital, fomos informados pelos médicos de que nem um milagre a manteria viva. Era uma questão de tempo, até se apagar, lentamente como uma vela.
Antes de mais, sempre que me lembro disso, lembro-me do choque que senti. Parecia impossível, mas acontecia. A frio, sem anestesia para mim e para o meu pai, que, abraçados tentámos digerir a notícia, acompanhados por outros dois tios...
Nunca esquecerei de que à pergunta que me era feita por SMS «Então?» respondia apenas «(...)», incapaz de verbalizar o que acabara de acontecer.
Lembro-me também, e nunca quero esquecê-lo, de que não tive coragem para ficar ao lado dela, até que a vela se apagasse. Hoje olho para trás e sinto-me cobarde, não consigo perdoar-me (e agora nada há a fazer, é algo que vou sempre carregar) por a ter deixado ali a morrer sozinha... (confesso que na altura quis apenas proteger o meu pai e nunca falei disto com ele, nem hei de falar - acredito que se sinta hoje tão frustrado pela decisão que tomámos então como eu me sinto).
Adiante. A verdade é que depois de nos terem dito que seria, talvez, uma questão de meia-hora, uma hora, acabaram por vir dizer-nos que ela tinha reagido bem a um novo esforço. E que a partir daí não fazia sentido ficarmos no Hospital à espera. Poderia ainda morrer, sim, mas não se sabia ao certo se isso aconteceria. E, se acontesse, nada faria prever que acontecesse nas horas mais próximas.
Fomos então para casa, sabendo que quando alguém morre num hospital durante a noite os familiares são convocados por telefone, bem cedo no novo dia, para irem ao hospital.
Lembro-me de ter dormido num misto de esperança na recuperação e fé de que o telefone não tocasse.
A verdade é que tocou. Não sei a que horas, mas acho que antes das oito.
O meu pai, que tinha dormido em nossa casa, acordou-me. Sabíamos que íamos sair de casa para ouvir a notícia que não queríamos. Mas lá íamos. Fomos o caminho quase todo em silêncio. Nem uma palavra.
Lembro-me de, ao chegar, dizer, e querer acreditar, claro: «vamos ser positivos, talvez nos tenham chamado para dizer que já está consciente, que recuperou bem». Na verdade, não acreditava, nem o meu pai.
E assim entrámos na sala da espera do serviço de cuidados intensivos (pomposamente chamado com outro nome qualquer, tenho a certeza, mas não me recordo de qual).
Só nós lá estávamos. A funcionária administrativa haveria de entrar pelas nove horas, se não estou em erro.
Chegou um pouco antes, 8h55, talvez. Vinha ensonada, com cara de "ressaca" pós natal. Era dia 26 e o mundo dela tinha, espero eu, sido de alegria nos dias anteriores.
Surpreendida (talvez por ser dia 26) chegou, deixou a mala no seu lugar, e foi tomar um café. Afinal, ainda não era hora de entrar... Só quando chegou a hora de pegar ao trabalho com ela conversámos. Explicámos ao que vínhamos (obviamente não era preciso, se ali estávamos era porque tínhamos sido chamados para nos ser comunicado o óbito). Como estava, ficou. Arrumou mais meia dúzia de coisas e só passados mais uns minutos informou os médicos de que ali estávamos (antes esperámos sem ter como dizer...).
Para ela, estarmos ali à espera da confirmação da morte de uma das pessoas que mais amamos era quase o mesmo que estarmos à espera de saber a que horas abria o bar...
Não me lembro da cara dela, nem da idade, nem da roupa. Já o que nunca esquecerei é da cara da médica e da enfermeira que a acompanhava quando finalmente nos disseram o que já sabíamos. Nem de como a enfermeira chorou ao mesmo tempo que nós, ao ver-nos chorar...
Como é possível duas pessoas terem reações tão diferentes perante a morte do familiar de alguém que está à sua frente? Não sei. Nem tão pouco quero sugerir que aquela pessoa é fria ou insensível - não a conheço, não sei de nada... Mas sei que o que aqui acabo de relatar é algo que nunca hei de (nem quero) esquecer...
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