Porque há textos que não podem ser apagados

A aventura do coiso


Falando sobre o carnaval brasileiro, Luís Pereira de Sousa referia-se à "genitália desnudada" dos participantes. A expressão, singela como o autor dela, parece parte dalgum hediondo soneto do século XVIII - "Oh desnudada genitália de doce nereide / Só de pensar que um dia te hei-de". Et caetera.

O pobre Pereira de Sousa não tem culpa. O problema é comum a todos os portugueses - como é que alguém se refere à genitália no dia a dia? Uma pessoa vai ao médico e queixa-se: "Sr. doutor, ultimamente tenho tido uma certa comichão na genitália?" e ele manda pôr a genitália de molho?



Tem de se falar nestas coisas. Assim como não há nome para chamar um empregado de mesa, tem de haver um nome não-ordinário para as nossas partes. E falando em partes gagas, os freudianos, como o Eduardo Prado Coelho, dizem "falo", mas é muito pretensioso. Dá para imensos trocadilhos entre o falo e o falar, em longos textos sobre o desejo e o indizível, mas não dá jeito nenhum. Um amigo não se vira para o outro e diz: "Ai que entalei o falo no fecho-éclair!".

Como é que se há-de chamar ao raio do coiso? Há muita gente que, para suavizar, prefere os nomes infantis. Por exemplo, pipi e pilinha. O problema é a falta de seriedade.

Não falo sequer numa situação de cama, onde chamar pipi e pilinha aos órgãos sexuais pode provocar incuráveis impotências e frigidezes. Imagine-se uma Messalina, de cabelo revolto, arrancando a túnica do corpo num impetuoso gesto de paixão e gritando: "Sou tua, toma-me! Penetra-me com a tua pilinha!". A própria pilinha transforma qualquer pilar numa pilinha.

Não se pode brincar com estas coisas. Para um homem, o sexo é o centro da sua virilidade e do seu vigormalte. Não faz jus à sua masculinidade ouvir chamar à sua potência primeva, à sua viga de argibetão, um pirilau. Um pirilau é um pirilampo à mistura com lacrau. Pica mas não dá luz. É giro, mas não é gerador.

Há quem goste de dar ao coiso o nome do proprietário, atribuindo-lhe assim uma ternurenta personalidade. Por exemplo, tratando-se de um João, "Joãozinho pequenino". Até aos 11-12 anos tem graça, mas depois amarfanha um bocado. Primeiro, é o pequenino. Qualquer rapaz que se preze, ao ouvir uma namorada exclamar "Olá Zézinho pequenino!" amua e puxa logo pelo fecho-éclair, dando por concluídas as festividades. Depois, é os nomes. Joãozinho e Zézinho ainda passam, mas Inácio? E Hélder? Não pode ser. Mal por mal, os coisos têm mais cara de apelido. Imagine-se bem um Lopes, um Pacheco, um Fonseca. Sempre faz mais sentido. Ex: "Há uma cena no filme em que o Richard Gere aparece com o Pacheco à mostra."

Mas o pior é que os Portugueses, sendo brutos e vaidosos, exageram na maneira como descrevem os seus apêndices, dando-lhes nomes violentos e terríficos. Basta ler Bocage para ver o esforço que os homens fazem para engrandecer os pirilaus. Gostam de pensar nas suas minhocas como autênticos monstros, denominados marsapos e mangalhos. Nos seus psiques profundamente iludidos imaginam que albergam gigantes adamastores, entre as algibeiras, aterrorizadores de multidões. Vejam-se os sinónimos que aparecem nos dicionários: é uma maré de trangolhos e de lampreões. Chega-se mesmo ao tempo de dizer pantaleão.

São nomes vergonhosos, ordinários e machistas. Não lembra a mais ninguém chamar ao pénis nomes de armas. Já não digo o pau que ainda passa. O pau não tem necessariamente de ser uma coisa que serve para bater noutra pessoa. Há o pau-de-canela, por exemplo. E, de qualquer modo, como diz o povo, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Falo é de nomes com uma agressividade ridícula e repelente, como cacete, bacamarte, cassetete, catano e porra. Nem sequer se dão ao trabalho de actualizá-los: ao menos Kalashnikov em vez de bacamarte.

Com verga já é diferente. Para além da simpatia da expressão "força na verga", a ideia de verga tem ao menos a modéstia de reconhecer que pode, por assim dizer, vergar. Não é inflexível e infalível como o cacete. Não é tão arrogante, tão armado em ser mais de quebrar que torcer. Mas é muito ordinário à mesma. Não se pode esperar as melhores atenções de um médico quando, descendo as calças no consultório, se diz: "Sr. doutor, há qualquer coisa aqui na verga que não está bem."

Entre o infantilismo da pilinha e a bestialidade do mangalho tem de haver um meio termo. Há quem opte pela comédia musical, género "gaita", "flauta", "trombone de dois papos", et caetera, segundo a lógica poética do "If music be the food of love, then play on." Mas porquê? Os americanos, por exemplo, preferem a inspiração zoológica, como cobra das calças ou truta de bolso. Sempre tem alguma graça. Nós não. Há qualquer coisa de errado numa sociedade que tende a dar ao pénis nomes relacionados quer à pancadaria, quer à música. Se calhar é esta mistura de paus, charanga, saias e pêlos nas pernas que explica o eterno apelo, entre nós, dos pauliteiros de Miranda.

Por alguma estranha razão matemática, as palavras mais usadas para o coiso começam por "pi". Porque será? Será que o valor de "pi" ao quadrado equivale a alguma coisa? Não sei. Em termos centimétricos 3,14 parece muito pouco. De qualquer forma, temos aqui os grandes clássicos - a ubíqua pila (vergonha para quem perceba pila e não perceba ubíqua), a injectável pica, a hilariante piroca e as ortograficamente correctas (fui agora mesmo ver) pissa, pixa e pixota.

Nenhuma destas palavras serve. O que é que diz a classe médica? O que é que acham as mulheres? Deveria abrir-se um concurso nacional. Na cama, não há problemas, porque aí cada um chama ao coiso o que lhe apetecer. Mas falta um termo civilizado, que se possa utilizar em conversação normal. Talvez nomes de peixes - sardinha ou carapau. A palavra marmota é uma possibilidade. Ou nomes de cães. Por exemplo, perdigueiro. E quem sabe se Joli ou Nice ou até Mondego. Pensem nisso.

E o órgão sexual feminino? Se fôssemos todos do chá-das-cinco não havia problemas e diríamos todos pudenda. É de longe a palavra mais engraçada. Situa-se entre o querer e o poder, que é como quem diz, que em podendo, pois então. Mas é escusado estar para aqui a perder o meu latim.

Os nomes que se dão à coisa das mulheres traduzem uma certa misoginia. Ingleses e americanos, adoradores de gatos, chamam-lhe ternamente pussy, o que traduziria por bichaninha. Os Portugueses chamam-lhe rata. É a palavra mais feia da língua. Faz lembrar canos de esgoto e febre tifóide. Os Portugueses regularão bem da cabeça? É verdade que muitos americanos lhe chamam beaver (castor), mas sempre existe alguma semelhança. Agora rata?

Porque é que os Portugueses são brutos como as casas? Ao longo dos séculos de que dispuseram para examinar o sexo das mulheres e registar semelhanças, as conclusões a que chegaram foram, além da rata, pássara e passarinha, pardal e pombinha. Pego no álbum Aves de Portugal e num manual de ginecologia e, olhando de pardal em pardal, não acho uma única semelhança. Não compreendo.

Devo confessar que - seguindo o exemplo das crianças, que costumam ter mais bom gosto que os adultos - não antipatizo com pachacha, até pela ladainha "Ó senhor doutor, que hei-de eu fazer? / Queimei a pachacha com água a ferver!" Os restantes nomes são demasiado insultuosos. O sexo feminino, que tem uma complexidade maravilhosamente tecnológica, ao pé do qual o sexo masculino é pré-histórico, é reduzido à expressão mais simples. São nojentas todas as versões de greta, trica, boceta e não sei que mais.

Ó Sr. doutor, que se há-de fazer? Aqui em O Independente, o meu copy-desk sugere-me fofinha, que não me parece mal, apesar de dar a entender que poderá existir uma versão oposta, tipo esfregãozinho Bravo.

Enfim. Aceitam-se sugestões. Mandem os vossos postais que nós organizamos uma eleição. E até damos um prémio. Lembrem-se que tem de ser um termo que não ofenda nem homens nem mulheres, que possa ser usado em sociedade sem haver chuva de sopa e que, de preferência, seja terno sem ser infantil e "sexy" sem ser ordinário. Temos de começar a contemplar o nosso umbigo, isto é, se quisermos entrar na Europa de cabeça erguida.

Miguel Esteves Cardoso, em a Causa das Coisas

posted at 07:28:00 on 14-01-2004 by Zeno - Category: Jornal Ve

Comentários

Suz disse…
MEC é mestre!

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