Covid 19 (dia 1- 13/03) - O início

O meu dia 1 do Covid 19 não foi ontem (13/03/2020), mas façamos que sim. Porque ontem foi o primeiro dia em que o meu patrão me mandou trabalhar em casa. Entrámos num esquema de dividir o pessoal em duas metades que nunca se cruzam, de quinta a sexta. Uma semana estamos na redação, a outra em casa.

Adiante, que isto é mera introdução.

Decidi escrever um diário da minha convivência com o Covid-19 porque hoje foi, além do primeiro dia que fiquei em casa a trabalhar, o primeiro dia que os meus dois filhos não foram à escola. Ele está com 9 anos, ela com 4. Têm ainda pouca noção do que se passa e menos (ainda) capacidade para o perceber. Bem que tentamos explicar-lhes, ir alertando sem alarmar, mas tudo é ainda uma festa.

Foi quando a meio da manhã lhes deu a fome do "lanche da manhã" que me assustei (e pensei em escrever). Nunca fui de açambarcar supermercados em alturas de crise (nem de encher o carro com bidons de combustível em situações de aperto), mas quando hoje eles me disseram que queriam comer "Belgas de chocolate" olhei para  dispensa e percebi... "Isto vai correr mal". Ou melhor, isto vai correr com eles sem comerem belgas, ou sem outros luxos. Nada de grave. O pensamento foi mesmo para o facto de, como todos os pais sabem, haver poucas coisas mais irritantes que miudos a dizer que têm fome e a recusarem tudo o que lhes propomos porque só querem ou belgas de chocolate ou outra porcaria qualquer.

Isto de ser jornalista e ter amigos jornalistas tem grandes desvantagens. Logo para começar, o facto de estarmos sempre a esbarrar em informação. Olho para a direita, e dois infetados; olho para a esquerda e um porradão de mortos em Itália. Por outro lado, os nossos amigos são todos muito atentos e fazem-nos chegar toda a informação que leram algures e que basicamente serve para nos fazer sentir desesperados... (esta parte vou resolvendo com alguma serenidade, racionalizando que seja o que for que vai passar-se não só não depende de mim, como é estatisticamente improvável que do ponto de vista da saúde afete alguém que me seja próximo, ou a mim). Mas os dois minutos que desespero que sinto volta e meia, esses ninguém mos tira.

Acredito que não há por que ter vergonha: todos desesperamos por instantes. Todos entramos em pânico. Porque todos pensamos nos nossos pais, nos avõs que alguns ainda têm, nos filhos (e como será a vida deles se tiverem de lidar com a perda de entes queridos à conta deste raio deste vírus).

Voltando aos supermercados, acabei de passar hora e meia a fazer compras no site da Auchan para o meu pai (para lhe entregarem em casa) e para nós (cá em casa e meu sogro). O sistema estava lento, ia falhando, mas lá concluí os dois processos. A primeira data disponível para entrega é 20 de março. Uma semana exacta...

E isto é outro motivo de preocupação - não a semana, porque até lá não morreremos à fome - mas a locura instalada. É que cá por casa vamos tendo desde sempre algumas reservas básicas, mas de repente dei por mim a olhar para dispensa e a pensar: acho que vou ter de alimentar esta gente toda (e cozinhar para pai e sogro, que - decidimos - não vão sair de casa exceto em circunstâncias muito controladas) durante uma semana com arroz de salsicha, arroz de atum, massa com salsicha ou massa com atum... E não sei bem onde vou desencantar sopas e fruta sem me meter em lojas apinhadas de gente.

Meus caros... Não me parece que isto vá ser o fim do Mundo, mas será o fim do Mundo para muitos. Hoje à noite chegou-me notícia do Expresso que dizia que só em meados de maio se atingiria o pico dos novos casos (entre outras coisas assustadoras que chegaram de fontes fidedignas) e se assim for além de tudo o mais, parece-me que vamos ter de lidar com uma destruição  massiva de empregos. Ou seja, por vezes dá ideia de que quem sobreviver ao vírus leva a seguir uma tareia da crise económica. Que seja... Mesmo que desse para escolher, não diria "antes la muerte que tal suerte".


Já pensei em muita coisa. Já pensei até que escrever este "diário" - assim o consiga - será alimento para a alma dos meus filhos caso aconteça algo a algum de nós. E por aí tenho de dizer que eles hoje (talvez por ser o primeiro dia) se portaram espetacularmente. Mesmo sabendo que a mãe estava fora, no emprego, deixaram-me trabalhar remotamente e o dia (profissional) nem me correu mal. Às 23h as cinco páginas que pedi estavam prontas e fechadas na gráfica. E todas carregadinhas de informação relevante (quase toda sobre o Covid-19).

Algo que importa partilhar convosco. Por cá não temos vergonha de não ter certezas. Tentamos fazer um plano que se adeque à proteção da nossa família e evitar contactos sociais, mas já mudámos de ideias umas quantas vezes. Pensávamos trazer os avôs a almoçar cá aos sábados, como sempre, mas entretanto percebemos que pode ser arriscado.

Também não queremos deixá-los abandonados à depressão e ansiedade. Iremos visitá-los (talvez seguir a lógica dos hospitais - um visitante único a cada casa). E ir levando comida, de forma a evitar que eles se metam em lojas ou mini mercados cheios de gente.

Por falar em mini mercados: hoje de manhã depois de perceber que iam faltar bolachas visitei o Amanhecer aqui da rua. Tinha pouca gente e embora desconfiando de cada pessoa que via, mandei os putos ficarem na esplanada, e lá me atrevi a comprar umas quantas bolachas Maria e outras torradas. Mas o que me tocou realmente foi aquela senhora octogenária que (assustada como eu e como quem me lê) tentou abastecer a dispensa. 45 euros de conta e a cruel sentença do cartão MB: "não autorizado"... Não tenho como não pensar nisto.

Hoje, mesmo tendo acordado menos pressionado que na véspera, senti o desespero tocar-me várias vezes. As lágrimas vieram-me aos olhos, a preocupação assaltou-me. Estamos aqui, todos. E amanhã é outro dia.

Coragem pessoal. Muita coragem.

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