Deste segundo andar (quase direito)



Vejo a vida passar. Oiço os caloiros cantarem com os veteranos. Vejo os dois brasileiros, descalços, cada um com a sua televisão, cada um com a sua cama, os dois com o mesmo quarto, os dois juntos, os dois sós, os dois com a mesma certeza de que emigrar não foi a melhor solução. Vejo o velhote que quase nem se mexe, que ouve o Benfica no seu rádio a pilhas, que vê, como eu, a vida passar nos restaurantes e bares logo abaixo. Vejo, como o velhote do rádio a pilhas - com a diferença única de estar do outro lado da rua - os casais aborrecidos que tentam encontrar consolo num jantar na esplanada de um restaurante caro e de comida banal. Quase os oiço dizer, "então, môr, que vais comer?" mesmo antes de se calarem por não terem mais o que dizer um ao outro e de o disfarçarem fingindo que os olhares não se cruzam porque estão a ver algo fantástico como... bom... um pombo a rondar a mesa do lado. Quase os oiço dizerem repetidamente que aquele é um bairro fantástico, jovem, com espírito, pensando para com eles que já foram jovens - mesmo os que ainda o são - e que já tiveram alma.
Deste segundo andar, quase direito, oiço o flautista que não chama ratos nem moedas, mas que vai tocando todos os dias a mesma música. Oiço o preto - agora já se pode dizer preto sem se ser acusado de ser racista - que canta com voz roufenha canções que acredita chamarem moedas mas só afastam os ratos. Com asas, no caso. Para perto das mesas onde os casais aborrecidos os miram como se fossem a última razão de uma visita a esta Lisboa.
Neste segundo andar direito toco músicas dos 80. À vez, com os colegas que se tornaram amigos. À força de serem mais amigos do que colegas. À força de tantas horas passadas juntos. E de terem alma. Com eles nunca há aborrecimentos. E ouvimo-nos. Filmamo-nos a cantar hinos do Benfica, do Porto, do Sporting. Lembramos os tempos em que inventávamos hinos para o Estrela da Amadora, que, pobrezinho, tinha apenas para oferecer o restaurante do senhor Pereira. Sim, esse que transformávamos em sala de estar, noite dentro. O JPS com a viola, a Rita e o Xano com a voz - sim, assim mesmo, juntos, pois, já se viu, separados não existem - eu com o "Forentina de Jesus", o Nélson com o "We are the World", e o Limões com as cervejas atrás de cervejas.
Deste segundo andar, quase direito, vejo as memórias de tudo o que já fui, e tento apagar as de tudo o que serei. E desejo, sim desejo... nunca vir a ser tudo o que hoje vejo destas janelas...

Comentários

Rita disse…
:) pela parte que me toca...
A beleza das coisas tristes é uma coisa que ninguém explica, de facto. A melancolia bate abaixo do coração, acima da barriga, num meio termo onde talvez nenhum órgão fique. Belo texto, gosto geralmente de coisas vistas da janela, são como um sítio fora do tempo. Belo texto.
bf disse…
Que bom, os meus amigos apareceram!
Venham, venham aqui, que vocês são desta janela e esta janela é vossa
Anónimo disse…
enc@ntado :)
M. disse…
Parece que o facelift do blogue de notas também deu em soul lift... Continua a escrever, continua.

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